Leão (Parte 3 - Final)
No meio acadêmico, a forma com
que Henry conduzira o caso de Dario era fonte de muitos debates. Uns diziam que
o psicólogo não pode conduzir o paciente daquela forma. Outros diziam que,
tratando-se de uma investigação, guiar o criminoso para um desfecho é mais
importante do que tratar as causas que levaram o indivíduo ao crime. Fato é que
essa abordagem funcionara para Henry antes e parecia estar funcionando
novamente agora.
Até que chegou enfim o dia da
sessão derradeira. Naquele dia Henry entrou no presídio mais leve. Ele se
sentia pressionado para conseguir um desfecho da situação, mas estava confiante
de que conseguiria. Na noite anterior, dormira feito um bebê, nem chegou a
precisar do whisky barato e o espelho. Ele havia se convencido de que precisava
apenas encerrar o contato com Chiquinho para voltar a ficar bem. Era uma
mentira, mas uma mentira contada vezes o suficiente tem o mesmo poder da
verdade.
— Então, Chiquinho... Estávamos
falando da festa em que você conheceu o Eusébio, mas não me recordo bem como
você foi parar lá.
— Ah, dotô, esse bacana aí tinha
contatos. Um dia eu recebi uma ligação de um cara que disse que trabalhava pra
ele, mas num disse quem era. O cara me passou um endereço, disse que tinha
ouvido falar bem de mim e que tinha um tal de Euníades querendo me contratar.
— Euníades?
— Era o Eusébio, dotô, mas só
fiquei sabendo que era ele depois que os homi me pegaram mesmo. Na hora ele
disse que era Euníades. Nome estranho da porra.
— Certo, e como foi lá?
— Dotô, o senhor tinha que ver o
tamanho da casa do bacana. Enorme. Tinha piscina, um monte de planta. Eu nunca
tinha visto coisa assim, tudo chique. Aí cheguei lá e tava tendo um churrasco,
mas mandaram eu ir pela porta dos fundos. Sacanagem porque eu queria uma
carninha.
— E o Euníades encontrou você?
— Sim, ele me encontrou dentro da
casa, me cumprimentou e me levou pra um quarto cheio de livro bonito. Ele disse
que era o escritório dele.
— E sobre o que vocês
conversaram?
— Ah, ele começou a falar de futebol
pra puxar assunto, mas eu nem ouvi, dotô, tava de olho mesmo é nos livro. Eu
nem sei ler, dotô, mas acho livro uma coisa bonita. Eu gosto de pegar os livro
na mão e ficar passando as folha, fingindo que tô lendo, sabe? Aí quem olha
acha até que sou importante.
Henry não pôde evitar de sentir
um pouco de pena pela vida difícil que Chiquinho tivera. Talvez, em
circunstâncias mais favoráveis, Chiquinho poderia vir a ser Francisco, o
escritor, mas muitas vezes a vida toma rumos que fogem da nossa escolha e o
Francisco escritor era apenas um devaneio. A vida fez questão de matar todas as
versões de Francisco até restar somente Chiquinho Leão, assassino frio e cruel.
— E como o Euníades reagiu a você
mexer nos livros dele?
— Ele num gostou, não, dotô.
Rapidinho ele parou de falar de futebol e mandou eu sentar porque a coisa era
séria.
— Então ele disse o que queria?
— Sim. Ele disse que tinha um
pilantra aí chantageando ele. Disse que não era nada de mais, mas que precisava
dar uma lição no babaca pra ninguém tentar fazer igual. Aí ele me deu um
envelope com um monte de coisa escrita, mas eu num ia passar essa vergonha de
dizer que num sabia ler, né, dotô? Então só dei uma olhada nos papel, fingi que
tinha lido, joguei de volta pra ele e falei que num precisava daquilo, era só
me dizer o nome do caboclo e onde ele morava.
— E então?
— Aí o bacana sorriu e disse que
o cara se chamava Fernando Onça. Eu comecei a rir, e o bacana ficou sem
entender nada.
— Rir? Por quê?
— Porra, dotô, o cara era onça,
eu sou leão. Leão é o rei da selva, dotô, ele bota a onça pra comer capim pela
raiz.
— Na verdade, eu acho que eles
nem existem no mesmo habitat, mas... enfim, prossiga.
— Abi... o quê?
— Habitat, é onde o animal vive,
mas isso é irrelevante para a nossa conversa.
— Qual é o habitat do leão?
— Não é minha especialidade, mas
eu acho que é a savana. — Já prevendo que Chiquinho não fosse saber o que é a
savana, Henry se pôs a explicar da melhor maneira que podia. — É quase um
deserto, mas tem uma grama alta amarelada e algumas árvores.
— Eu sei o que é savana, dotô. Eu
sei tudo de leão porque é meu bicho favorito. Só não sabia o que era habitat.
— O habitat da onça é a floresta.
— Disse Henry já antevendo a pergunta de Chiquinho.
— Bom, essa onça aí morava num
prédio dum bairro de gente rica. Quando eu cheguei lá, vi o prédio todo bonitão
e achei que ele fosse bacana também.
— Você foi atrás do Fernando
Onça?
— Fui, né, me pagaram pra livrar
a Terra desse coitado, eu fui fazer meu serviço.
— E a conversa com o Euníades?
— Foi só aquilo mesmo. Ele me
disse onde o cara morava, e eu fui embora de lá só com o cheirinho de carne de
churrasco na mente.
Essa história não fazia sentido.
Chiquinho estava revelando em primeira mão detalhes que não havia revelado nem
para a polícia, possivelmente até um outro homicídio, mas isso não se encaixava
com a morte do senador. Por alguns instantes, a chama da esperança de provar a
inocência de Chiquinho reacendeu. Empolgado, Henry decidiu abandonar o
protocolo e fazer aquilo que sempre fora advertido a não fazer, pressionar e
ser direto com o paciente.
— Então você não matou o
Euníades?
— Claro que matei. Aquele
pilantra merecia morrer mais que qualquer um nesse mundo e eu num sou homem de
negar essa morte, não.
— Mas...
— Eu matei ele noutro dia, dotô.
— Elucidou Chiquinho já percebendo a confusão do psicólogo.
— Ah, sim...
A confissão atingiu Henry como um
balde de gelo. De repente ele foi tomado pelo mesmo sentimento dos
terrivelmente apaixonados que acordam sozinhos de um belo sonho com seus
amores. O amor de Henry, no caso, era o ideal inatingível de ajudar quem não
pode mais ser ajudado. Chiquinho era o despertador.
— Então você chegou na casa do
Fernando Onça. — Continuou Henry tentando conter o desânimo.
— Isso, dotô. Cheguei lá e fiquei
surpreso. O apartamento do panaca era minúsculo, dotô. Mal cabia a cama dele.
— Você não tinha dito que era um
apartamento bonito num bairro luxuoso?
— E era, dotô! Mas o cara morava
num cubículo. O covil da onça era uma jaulinha de cachorro.
— E o que você fez?
— Ele num tava em casa, então
olhei a geladeira dele e vi que tava vazia. Aí saí, fui na padaria, comprei
pão, presunto, queijo e um litro de leite. Depois voltei pro apartamento e
fiquei esperando ele aparecer.
— E quando ele apareceu?
— Deu umas meia-noite, o cara
chegou no maior amasso com uma morena. Tinha que ver a cara dos dois quando me
viu sentado na cama. Ele achou que era assalto, ela achou que era estupro. Dava
pra ver na cara deles. Mas eu num sou homi de estuprar ninguém, dotô. Matar tá tudo
bem, mas estuprar é maldade.
— E o que você fez para mostrar a
ela que não queria estuprá-la?
— Mostrei o trabuco pra ela e
falei: “ó, vaza daqui e num abre o bico pra ninguém. Meu negócio é com ele só.
Eu decorei teu rosto”.
— E você decorou mesmo o rosto
dela?
— A gente fala essas coisas de
sacanagem só, dotô. Se botasse essa morena na minha frente, eu nem ia
reconhecer. Não decoro nem meu almoço, imagina se vou decorar a cara de uma
coitada qualquer.
— E qual foi a reação do Fernando
Onça?
— Ele ficou paralisado de olho
arregalado, acho que ele sabia que a hora dele tinha chegado, dotô.
— Então você matou ele?
— Não, dotô. Quando a pessoa num
me fez nada, eu num mato assim, não. Tem que ter um preparo, as pessoas merece
dignidade na hora da morte também.
— Como assim? O que você fez
então?
— Eu perguntei se ele queria um
último lanche, mas ele num falou nada. Só ficou lá paradão, suando feito um
porco, nem parecia onça. Aí eu fiz um sanduíche pra ele e botei em cima da mesa
junto com o copo de leite.
— E ele comeu?
— Ele disse que num queria, que
tava sem fome. Aí mostrei o trabuco pra ele e mandei ele comer. Num vou deixar
que ele chegue na terra dos pé junto dizendo que mandei ele sem um lanche pra
viagem.
— E ele?
— Ué, ele começou a comer, né, dotô.
Não tinha muito o que fazer. Nisso eu fui explicando pra ele, que também num
gosto de matar ninguém sem a pessoa saber por que morreu. Falei: “ó, tu mexeu
com gente errada, tá sabendo? Quis chantagear um bacana aí, mas tu se fodeu.
Tinha que ser mais inteligente”. Depois eu pedi pra ele me mostrar onde tava as
coisa que ele usou pra chantagear meu cliente. Ele foi e me deu um envelope.
— E depois?
— Depois que ele terminou de
comer, eu passei ele, dotô. Um só bem dado no meio da testa e pronto. Ainda fui
legal e perguntei onde ele queria morrer. Ele disse que queria na cama. Esperei
ele deitar e pei!
— E o que tinha no envelope?
— Normalmente eu nem mexo nessas
coisa, sabe, dotô? Eu só entrego pro cliente e nem me meto, mas eu tava puto
que aquele maldito num me deu uma carninha. Um baita churrascão de grã-fino, e
o desgraçado não me dá nem um pão de alho?! Aí eu abri o envelope...
— E o que você viu? — Insistiu
Henry já imaginando que essa fosse a chave para entender o assassinado de
Eusébio.
— O vermelho, dotô. O vermelho
tomou tudo.
Nessa hora, surpreendentemente,
os olhos de Chiquinho começaram a ser tomados por lágrimas. O que quer que ele
estivesse imaginando era doloroso até para um assassino em série frio e cruel.
Henry não conseguia imaginar que tipo de visão tão brutal poderia chocar
Chiquinho Leão, homem que falou de tantos traumas da vida sem qualquer esboço
de salgar o rosto.
As palavras seguintes de
Chiquinho foram o suficiente para que tudo se encaixasse, tudo fizesse sentido.
— Era.... Era crianças, dotô. Criancinha.
Bebê. E o maldito tava lá, dotô. Isso num pode, num tá certo. E aí ficou tudo
vermelho.
Era uma manhã de segunda-feira e
Henry acompanhava por alto, ouvindo no computador, a repercussão do homicídio
de um senador honrado e dedicado à família. A polícia tratou de acobertar bem
as causas que levaram ao crime. Trataram como latrocínio e ficou por isso
mesmo. A curiosidade dos superiores de Gaspar sumiu de repente. Falaram que não
se pode manchar sem provas a imagem de um homem tão nobre, de família, com vida
e conduta ilibadas.
Enquanto ouvia as pessoas aos
prantos dizendo o tanto que Eusébio Ciqueira era um homem bom que não fizera
mal algum em sua passagem pelo mundo, Henry colocava na tela do computador seu
próximo voo no mundo literário. Como ele dizia aos pares, amigos e familiares:
mais um caso, mais um livro.
Aqueles que vieram a ler sua obra
seguinte, intitulada “Leão”, puderam vislumbrar a mente de um psicopata
perigoso, frio, calculista e cruel. Nenhum dos leitores sequer imaginava o
quanto Henry convenientemente deixara fora do livro, os espelhos quebrados, os
copos estilhaçados e as incontáveis garrafas de whisky barato espalhadas pela
casa. O abismo olhava fixamente para Henry e gostava do que via.
Raphael Henrique Silva
Quintão
20 de setembro de
2020
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