domingo, 20 de setembro de 2020

Leão (Parte 3 - Final)

 Leão (Parte 3 - Final)

No meio acadêmico, a forma com que Henry conduzira o caso de Dario era fonte de muitos debates. Uns diziam que o psicólogo não pode conduzir o paciente daquela forma. Outros diziam que, tratando-se de uma investigação, guiar o criminoso para um desfecho é mais importante do que tratar as causas que levaram o indivíduo ao crime. Fato é que essa abordagem funcionara para Henry antes e parecia estar funcionando novamente agora.

Até que chegou enfim o dia da sessão derradeira. Naquele dia Henry entrou no presídio mais leve. Ele se sentia pressionado para conseguir um desfecho da situação, mas estava confiante de que conseguiria. Na noite anterior, dormira feito um bebê, nem chegou a precisar do whisky barato e o espelho. Ele havia se convencido de que precisava apenas encerrar o contato com Chiquinho para voltar a ficar bem. Era uma mentira, mas uma mentira contada vezes o suficiente tem o mesmo poder da verdade.

— Então, Chiquinho... Estávamos falando da festa em que você conheceu o Eusébio, mas não me recordo bem como você foi parar lá.

— Ah, dotô, esse bacana aí tinha contatos. Um dia eu recebi uma ligação de um cara que disse que trabalhava pra ele, mas num disse quem era. O cara me passou um endereço, disse que tinha ouvido falar bem de mim e que tinha um tal de Euníades querendo me contratar.

— Euníades?

— Era o Eusébio, dotô, mas só fiquei sabendo que era ele depois que os homi me pegaram mesmo. Na hora ele disse que era Euníades. Nome estranho da porra.

— Certo, e como foi lá?

— Dotô, o senhor tinha que ver o tamanho da casa do bacana. Enorme. Tinha piscina, um monte de planta. Eu nunca tinha visto coisa assim, tudo chique. Aí cheguei lá e tava tendo um churrasco, mas mandaram eu ir pela porta dos fundos. Sacanagem porque eu queria uma carninha.

— E o Euníades encontrou você?

— Sim, ele me encontrou dentro da casa, me cumprimentou e me levou pra um quarto cheio de livro bonito. Ele disse que era o escritório dele.

— E sobre o que vocês conversaram?

— Ah, ele começou a falar de futebol pra puxar assunto, mas eu nem ouvi, dotô, tava de olho mesmo é nos livro. Eu nem sei ler, dotô, mas acho livro uma coisa bonita. Eu gosto de pegar os livro na mão e ficar passando as folha, fingindo que tô lendo, sabe? Aí quem olha acha até que sou importante.

Henry não pôde evitar de sentir um pouco de pena pela vida difícil que Chiquinho tivera. Talvez, em circunstâncias mais favoráveis, Chiquinho poderia vir a ser Francisco, o escritor, mas muitas vezes a vida toma rumos que fogem da nossa escolha e o Francisco escritor era apenas um devaneio. A vida fez questão de matar todas as versões de Francisco até restar somente Chiquinho Leão, assassino frio e cruel.

— E como o Euníades reagiu a você mexer nos livros dele?

— Ele num gostou, não, dotô. Rapidinho ele parou de falar de futebol e mandou eu sentar porque a coisa era séria.

— Então ele disse o que queria?

— Sim. Ele disse que tinha um pilantra aí chantageando ele. Disse que não era nada de mais, mas que precisava dar uma lição no babaca pra ninguém tentar fazer igual. Aí ele me deu um envelope com um monte de coisa escrita, mas eu num ia passar essa vergonha de dizer que num sabia ler, né, dotô? Então só dei uma olhada nos papel, fingi que tinha lido, joguei de volta pra ele e falei que num precisava daquilo, era só me dizer o nome do caboclo e onde ele morava.

— E então?

— Aí o bacana sorriu e disse que o cara se chamava Fernando Onça. Eu comecei a rir, e o bacana ficou sem entender nada.

— Rir? Por quê?

— Porra, dotô, o cara era onça, eu sou leão. Leão é o rei da selva, dotô, ele bota a onça pra comer capim pela raiz.

— Na verdade, eu acho que eles nem existem no mesmo habitat, mas... enfim, prossiga.

— Abi... o quê?

— Habitat, é onde o animal vive, mas isso é irrelevante para a nossa conversa.

— Qual é o habitat do leão?

— Não é minha especialidade, mas eu acho que é a savana. — Já prevendo que Chiquinho não fosse saber o que é a savana, Henry se pôs a explicar da melhor maneira que podia. — É quase um deserto, mas tem uma grama alta amarelada e algumas árvores.

— Eu sei o que é savana, dotô. Eu sei tudo de leão porque é meu bicho favorito. Só não sabia o que era habitat.

— O habitat da onça é a floresta. — Disse Henry já antevendo a pergunta de Chiquinho.

— Bom, essa onça aí morava num prédio dum bairro de gente rica. Quando eu cheguei lá, vi o prédio todo bonitão e achei que ele fosse bacana também.

— Você foi atrás do Fernando Onça?

— Fui, né, me pagaram pra livrar a Terra desse coitado, eu fui fazer meu serviço.

— E a conversa com o Euníades?

— Foi só aquilo mesmo. Ele me disse onde o cara morava, e eu fui embora de lá só com o cheirinho de carne de churrasco na mente.

Essa história não fazia sentido. Chiquinho estava revelando em primeira mão detalhes que não havia revelado nem para a polícia, possivelmente até um outro homicídio, mas isso não se encaixava com a morte do senador. Por alguns instantes, a chama da esperança de provar a inocência de Chiquinho reacendeu. Empolgado, Henry decidiu abandonar o protocolo e fazer aquilo que sempre fora advertido a não fazer, pressionar e ser direto com o paciente.

— Então você não matou o Euníades?

— Claro que matei. Aquele pilantra merecia morrer mais que qualquer um nesse mundo e eu num sou homem de negar essa morte, não.

— Mas...

— Eu matei ele noutro dia, dotô. — Elucidou Chiquinho já percebendo a confusão do psicólogo.

— Ah, sim...

A confissão atingiu Henry como um balde de gelo. De repente ele foi tomado pelo mesmo sentimento dos terrivelmente apaixonados que acordam sozinhos de um belo sonho com seus amores. O amor de Henry, no caso, era o ideal inatingível de ajudar quem não pode mais ser ajudado. Chiquinho era o despertador.

— Então você chegou na casa do Fernando Onça. — Continuou Henry tentando conter o desânimo.

— Isso, dotô. Cheguei lá e fiquei surpreso. O apartamento do panaca era minúsculo, dotô. Mal cabia a cama dele.

— Você não tinha dito que era um apartamento bonito num bairro luxuoso?

— E era, dotô! Mas o cara morava num cubículo. O covil da onça era uma jaulinha de cachorro.

— E o que você fez?

— Ele num tava em casa, então olhei a geladeira dele e vi que tava vazia. Aí saí, fui na padaria, comprei pão, presunto, queijo e um litro de leite. Depois voltei pro apartamento e fiquei esperando ele aparecer.

— E quando ele apareceu?

— Deu umas meia-noite, o cara chegou no maior amasso com uma morena. Tinha que ver a cara dos dois quando me viu sentado na cama. Ele achou que era assalto, ela achou que era estupro. Dava pra ver na cara deles. Mas eu num sou homi de estuprar ninguém, dotô. Matar tá tudo bem, mas estuprar é maldade.

— E o que você fez para mostrar a ela que não queria estuprá-la?

— Mostrei o trabuco pra ela e falei: “ó, vaza daqui e num abre o bico pra ninguém. Meu negócio é com ele só. Eu decorei teu rosto”.

— E você decorou mesmo o rosto dela?

— A gente fala essas coisas de sacanagem só, dotô. Se botasse essa morena na minha frente, eu nem ia reconhecer. Não decoro nem meu almoço, imagina se vou decorar a cara de uma coitada qualquer.

— E qual foi a reação do Fernando Onça?

— Ele ficou paralisado de olho arregalado, acho que ele sabia que a hora dele tinha chegado, dotô.

— Então você matou ele?

— Não, dotô. Quando a pessoa num me fez nada, eu num mato assim, não. Tem que ter um preparo, as pessoas merece dignidade na hora da morte também.

— Como assim? O que você fez então?

— Eu perguntei se ele queria um último lanche, mas ele num falou nada. Só ficou lá paradão, suando feito um porco, nem parecia onça. Aí eu fiz um sanduíche pra ele e botei em cima da mesa junto com o copo de leite.

— E ele comeu?

— Ele disse que num queria, que tava sem fome. Aí mostrei o trabuco pra ele e mandei ele comer. Num vou deixar que ele chegue na terra dos pé junto dizendo que mandei ele sem um lanche pra viagem.

— E ele?

— Ué, ele começou a comer, né, dotô. Não tinha muito o que fazer. Nisso eu fui explicando pra ele, que também num gosto de matar ninguém sem a pessoa saber por que morreu. Falei: “ó, tu mexeu com gente errada, tá sabendo? Quis chantagear um bacana aí, mas tu se fodeu. Tinha que ser mais inteligente”. Depois eu pedi pra ele me mostrar onde tava as coisa que ele usou pra chantagear meu cliente. Ele foi e me deu um envelope.

— E depois?

— Depois que ele terminou de comer, eu passei ele, dotô. Um só bem dado no meio da testa e pronto. Ainda fui legal e perguntei onde ele queria morrer. Ele disse que queria na cama. Esperei ele deitar e pei!

— E o que tinha no envelope?

— Normalmente eu nem mexo nessas coisa, sabe, dotô? Eu só entrego pro cliente e nem me meto, mas eu tava puto que aquele maldito num me deu uma carninha. Um baita churrascão de grã-fino, e o desgraçado não me dá nem um pão de alho?! Aí eu abri o envelope...

— E o que você viu? — Insistiu Henry já imaginando que essa fosse a chave para entender o assassinado de Eusébio.

— O vermelho, dotô. O vermelho tomou tudo.

Nessa hora, surpreendentemente, os olhos de Chiquinho começaram a ser tomados por lágrimas. O que quer que ele estivesse imaginando era doloroso até para um assassino em série frio e cruel. Henry não conseguia imaginar que tipo de visão tão brutal poderia chocar Chiquinho Leão, homem que falou de tantos traumas da vida sem qualquer esboço de salgar o rosto.

As palavras seguintes de Chiquinho foram o suficiente para que tudo se encaixasse, tudo fizesse sentido.

 — Era.... Era crianças, dotô. Criancinha. Bebê. E o maldito tava lá, dotô. Isso num pode, num tá certo. E aí ficou tudo vermelho.

Era uma manhã de segunda-feira e Henry acompanhava por alto, ouvindo no computador, a repercussão do homicídio de um senador honrado e dedicado à família. A polícia tratou de acobertar bem as causas que levaram ao crime. Trataram como latrocínio e ficou por isso mesmo. A curiosidade dos superiores de Gaspar sumiu de repente. Falaram que não se pode manchar sem provas a imagem de um homem tão nobre, de família, com vida e conduta ilibadas.

Enquanto ouvia as pessoas aos prantos dizendo o tanto que Eusébio Ciqueira era um homem bom que não fizera mal algum em sua passagem pelo mundo, Henry colocava na tela do computador seu próximo voo no mundo literário. Como ele dizia aos pares, amigos e familiares: mais um caso, mais um livro.

Aqueles que vieram a ler sua obra seguinte, intitulada “Leão”, puderam vislumbrar a mente de um psicopata perigoso, frio, calculista e cruel. Nenhum dos leitores sequer imaginava o quanto Henry convenientemente deixara fora do livro, os espelhos quebrados, os copos estilhaçados e as incontáveis garrafas de whisky barato espalhadas pela casa. O abismo olhava fixamente para Henry e gostava do que via.

 

 

Raphael Henrique Silva Quintão

20 de setembro de 2020

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