Leão (Parte 2)
Ao longo das sessões seguintes,
Chiquinho foi se soltando cada vez mais e ficando mais e mais falante, deixando
Henry incrivelmente surpreso e certo de que Chiquinho sabia muito da vida e de
quase todas as outras coisas. Chiquinho também parecia ter um humor sombrio,
ligeiramente ácido e quase constante. Às vezes ele revelava traços de si em
forma de piadas ou tiradas engraçadas. Certa vez, ao ser indagado por Henry
sobre a profissão de assassino de aluguel, Chiquinho respondeu: “na verdade,
dotô, eu trabalho mesmo é com comunicação, sabe? Às vezes, a gente tudo fala
brasileiro, mas num se entende. Agora a violência é universal. Num tem quem num
entenda o canto do meu trabuco”.
Em outra ocasião, após algumas
tentativas frustradas, Henry conseguiu finalmente fazer Chiquinho falar um
pouco mais sobre sua infância e adolescência.
— Como você descreveria sua
relação com sua mãe, Chiquinho?
— Ah, dotô... Só tinha duas
coisas que ela fazia, trabalhar e me bater, mas eu gostava dela, ela tava
fazendo o que podia, e eu num era nenhum santo, num sou até hoje.
— Você sentia que esse seu afeto
por ela era retribuído?
— Olha, quando eu era menorzinho
eu achava que sim, viu? Achava que os socos, o cinto, a corrente e tudo mais
eram a forma dela de mostrar amor.
— E o que te fez mudar de ideia?
— Foi quando ela botou aquele
traste pra dentro de casa. Ela dizia que amava ele, mas não batia nele. Então
comecei a duvidar.
— Nessa época você tinha quantos
anos? 11?
— Isso, dotô.
Henry ficou impressionado com a
capacidade de reflexão e organização dos próprios sentimentos de Chiquinho. Não
era qualquer criança de 11 anos que conseguia raciocinar daquela forma.
— E como era a sua relação com
seu padrasto?
— Ele era um maldito, me batia
até mais que minha mãe. Batia nela também. E bebia, vivia fedendo a cachaça.
Acho que o ódio que eu tomei foi tão grande que é por isso que eu nunca bebi
uma gota de pinga.
— Como você se sentia quando via
seu padrasto agredir sua mãe?
— No começo eu achava meio
estranho, porque ele batia nela, ela ficava apavorada, chorava, gritava, e eu
pensava: “ué, mas ele só tá mostrando que te ama”. Nessa época eu ainda num
entendia, mas, aos poucos, eu comecei a entender o que era amor de verdade. Ela
levava cerveja pra ele, fazia cafuné nele, fazia tudo que ele pedia, as coisas
todas, coisas que nunca fez pra mim. Aí eu entendi, é isso então que é amor. É
a gente tratar bem as pessoa, com carinho, sabe, dotô?
— Existem várias formas de amar,
Chiquinho. O que fizeram com você foi errado, mas você não pode esperar que o
amor seja apenas uma relação limitada de subserviência e afeto.
— Subiservi... Dotô, que
palavrinha complicada. Que que é isso?
Henry se viu conversando com
alguém com inteligência emocional tão elevada que, por alguns instantes,
esqueceu que Chiquinho era um homem simples de palavras simples, e não um dos
seus clientes de classe média alta que pagavam fortunas na consulta e podiam
ser dar ao luxo de ler Nietzsche.
— Perdão, Chiquinho,
subserviência quer dizer servidão. Sua mãe agia como escrava do seu padrasto. É
uma forma de amor, mas não é saudável. Existem outras formas de se amar.
— Que outras formas?
— Por exemplo, o companheirismo
entre amigos é uma forma de amor.
— Ah, dotô, esse negócio de amigo
num dá certo, não.
— Por quê?
— Ah, dotô, quando eu era moleque
e fiquei preso lá naquele centro, eu fiz um monte de amigo. — Disse Chiquinho
fazendo sinal de aspas com as mãos enquanto dizia a palavra “amigo”. — Na hora
do vamo vê, eles tudo fugiram, me deixaram sozinho.
— Como foi isso?
— Lá dentro tinha esse negócio de
gangue, sabe? Quando eu entrei, falaram que eu tinha que escolher uma gangue,
senão iam me matar. Tinha duas gangues, eu fui e escolhi uma.
— Foi nessa gangue que você fez
esses amigos?
— Isso. A gente andava junto o
tempo todo. Tinha que ser assim, senão a molecada da outra gangue pegava a
gente na judiaria. Uma vez pegaram um moleque lá, tal de João. Bagunçaram o
moleque de tudo que é jeito. Depois ele se enforcou com um lençol.
— Esse João era da sua gangue, no
caso?
— Acho que era, dotô, num sei bem
porque ele vivia isolado. Quem se isola vira alvo fácil, por isso a gente
andava tudo junto. Então era difícil num virar amigo, né... Todo dia andando
junto, comendo junto, dormindo junto.
— E como foi que você descobriu
que eles não eram seus amigos de verdade?
— Teve um dia lá que o Pedrin...
Pedrin era o líder da nossa gangue. Ele foi mijar e os moleque da outra gangue
pegaram ele na judiaria. A gente foi ajudar, mas tinha um monte deles lá. Daí
deu confusão, mas eles tavam em maior número.
— E qual foi o desfecho?
— No final a gente conseguiu
soltar o Pedrin, e ele correu junto com a molecada, mas um babaca tinha me
pegado no mata-leão lá e eu fiquei preso.
— E o que fizeram com você?
— Ah, eles queriam fazer maldade
comigo, né? Mas eu num ia deixar, não. Eu sou magrelo, dotô, eu sei que sou.
Nunca liguei muito pra isso, não, mas o povo olha e acha que pode se fazer em
cima de mim. O macete é tu ser cruel, dotô, foi isso que aprendi.
— Como assim cruel?
— Tem que bater onde machuca e
tem que bater pra que o infeliz nem levante mais.
Nesse momento, a mente de Henry
foi tomada de assalto pelas imagens das fotos do corpo do senador dilacerado.
Algumas coisas já começavam a fazer sentido, mas não do jeito que Henry queria.
Provar a inocência de Chiquinho já começava a parecer um sonho inalcançável. O
psicólogo tentou afastar esses pensamentos e manter o foco, mas uma pergunta
ecoava em sua cabeça: “será que esse Chiquinho franzino é o mesmo homem capaz
de dilacerar uma jugular feito um monstro?”.
— E foi isso que você fez com os
garotos?
— Só com um, o que tava me
segurando.
— O que você fez?
— Quando essas coisa acontece, o
vermelho vem em mim, dotô...
— Vermelho? — Interrompeu Henry.
— É, fica tudo vermelho e eu me
sinto meio sem controle. Parece que viro bicho. Eu dei um soco nas bolas dele.
O moleque caiu no chão. Eu já subi nele e soquei o pescoço dele, bem no gogó,
soquei até ele cuspir sangue, aí eu soquei mais. Ele tentava proteger com o
queixo, mas eu puxava o queixo dele pra cima e socava mais. Depois ele começou
a se tremer todo, e eu continuei socando.
Nessa hora Henry teve certeza de
que sim, Chiquinho seria capaz de dilacerar uma jugular feito um monstro, mas
não sem provocação. Como Chiquinho mesmo havia dito, para que ele virasse essa
fera, era necessário evocar o “vermelho”. A questão agora era, o que o senador
fizera para evocar o vermelho em Chiquinho?
Por mais que Henry tentasse
controlar sua imaginação, não conseguiu evitar de criar em sua mente a visão de
Chiquinho, ainda criança, afundando no soco a traqueia de outro jovem. A cena
era gráfica, aterrorizante e... vermelha, porém Henry tinha um trabalho a
fazer. Os estragos psicológicos podiam ser remediados mais tarde com whisky
barato e uma rodada de autodepreciação à frente do espelho.
— E o vermelho?
— Continuou.
— O que você fez então?
— A molecada ficou toda apavorada
ao redor olhando. Quando você tá numa situação dessas, dotô, num pode deixar o
medo te dominar. Se o medo te domina, você perde, entendeu? A molecada ali ficou
presa no medo, eu aproveitei.
— Aí você fugiu?
— Não, dotô. Eu precisava deixar
um exemplo pra eles. Quando a gente é esmirrado assim, tem que provar tudo
dobrado. Então, em vez de matar um, eu matei dois.
— Como foi isso?
— Peguei um zé lá que tava de
boca aberta e se borrando de medo. Empurrei ele, e ele já caiu no chão todo sem
jeito. Aí eu peguei o pescoço dele com as duas mãos e apertei. Ele começou a se
debater, eu fui e bati a cabeça dele no chão. Aí ele parou, ficou meio tonto. E
eu apertando o pescoço dele. Ele foi ficando roxo e começou a se tremer todo.
— Até ele morrer?
— Não, dotô, chegaram os adultos
lá que trabalhavam no centro e me tiraram de cima do pivete. Me falaram que ele
morreu depois.
— E o vermelho?
— Sumiu na hora que me tiraram de
cima do moleque. Pra falar a verdade, dotô, ele num merecia aquilo, não, mas
ele tava lá, e eu tinha que mostrar que ninguém vai me bagunçar. Então foi ele
mesmo. Hora errada, lugar errado.
— E o que você sentiu quando
tirou a vida deles?
— Muita raiva.
— Só isso?
— Não. — Respondeu Chiquinho após
alguns segundos de silêncio. — Eu senti que a gente tava perto, tem uma palavra
pra isso, quando você é muito chegado na pessoa, qual é?
— Intimidade?
— Isso. Eu senti intimidade com
eles. Nunca falei isso pra ninguém, dotô, mas normalmente eu mato com tiro, né?
Um bem dado na testa e pronto, é mais limpo e mais prático. Poupa o teu tempo e
o meu, mas com a mão é diferente...
— Diferente como?
— É diferente você sentir a
pessoa. Você sente o quente do corpo dela. O sangue dela entra nas tuas unhas e
deixa sujo. Dá até pra sentir o coração dela parando, dotô. Pra mim, esse é um
momento de muita intimidade. Você sente com as mãos os últimos segundos da
pessoa na Terra.
— E você julgaria essa sensação
como boa ou ruim?
— Olha, tem maluco pra tudo nesse
mundo, né, dotô? Mas eu num gostei, não. Por isso hoje em dia eu uso arma.
Agora, quando forem me matar, quero que seja com as mãos.
— Por quê?
— Porque acho que vou me sentir
menos sozinho assim, com alguém pra sentir meus últimos momentos comigo.
— Você falou do vermelho... Seu
padrasto fazia você ver vermelho?
— Ô! O tempo todo, dotô. Até o
dia que ele conheceu a peixeira lá de casa, aí nunca mais.
— Como foi isso?
— O maldito chegou em casa
fedendo a pinga como sempre, mas nesse dia minha mãe já tinha me dado uma
surra, então eu já tava vendo tudo vermelho. Aí o pilantra foi no meu quarto e
me bateu também, sem motivo nenhum, dotô. Eu tava quieto. Ele veio e deu uma
bicuda na minha barriga. Cospiu na minha cara e mandou eu ficar quieto que ele
queria comer minha mãe em paz.
— E depois?
— Aí ele foi pro quarto dela, e
eu fiquei encolhido ouvindo os gritos. Um tempo depois a gritaria passou e
ficou tudo silêncio. Aí eu fui no quarto da minha mãe olhar. Tava os dois pelados
na cama. Minha mãe tava cheia de sangue, achei até que ela tava morta.
— E o que você fez?
— Fui na cozinha e peguei a maior
faca que tinha lá. Depois voltei no quarto e passei a faca no pescoço dele. Ele
ainda chegou a levantar e me dar um soco na cara, mas logo caiu de joelhos. Ele
ficava tentando tapar o corte com a mão, mas jorrava sangue pra todo lado.
— E o vermelho?
— Foi sumindo junto da vida dele.
A cada jorrada de sangue, o vermelho diminuía. Parecia que a fera tava ficando
saciada.
E foi assim que Henry ficou
sabendo em detalhes dos delitos mais hediondos da infância e adolescência de
Chiquinho. O psicólogo ainda via muito terreno a ser explorado, mas já tinha
certeza de que aquele detento não era um psicopata unidimensional sedento por sangue,
mas sim um personagem complexo de múltiplas facetas e difícil compreensão.
Para Henry, o mergulho na mente
de Chiquinho se equiparava a um mergulho na escuridão. Cada vez mais Henry via
sua mente tomada por pensamentos sombrios e negativos. Ele lembrava de
Nietzsche e se perguntava se não estaria olhando demais para o abismo.
Secretamente, ele tinha medo de que o abismo olhasse de volta para ele. No
fundo, o medo de Henry não era de conhecer mais de Chiquinho, mas sim de se
identificar com aquele criminoso monstruoso por quem tinha estranho fascínio.
Os dias foram se passando, e as
consultas se repetiam. Aos poucos, Henry conhecia mais de Chiquinho e de si
próprio. A chance de ajudar Chiquinho de alguma forma também parecia mais e
mais remota. Paralelamente a isso, os rituais na frente do espelho também
ficavam mais frequentes e fugiam de controle. Certo dia a rotina ritualística
precisou ser interrompida porque Henry, num acesso de fúria, tacou o copo de
whisky contra o próprio reflexo, quebrando o espelho. Aquele ato trouxe a ele
uma paz bem efêmera que logo foi substituída por desespero, sentimento que só
passou após a troca do espelho quebrado e o retorno à rotina autodepreciativa.
Henry não sabia, mas o abismo já olhava de volta para ele e gostava do que via.
Em certo momento, Henry por fim
notou que precisava pôr um fim àquilo, que as idas ao presídio e o contato com
Chiquinho estavam o consumindo e que ele não aguentaria por muito mais tempo.
Ele precisava dar um basta naquela jornada macabra de conhecimento, antes que
ficasse tão danificado a ponto de perder a funcionalidade.
Então Henry se programou e
prometeu para si que resolveria aquele caso em mais cinco sessões. Dario
precisara de doze sessões para se abrir. Com medo de condenar outro inocente,
Henry prolongou a dança com Chiquinho por mais de vinte sessões. Ele não guiava
seu paciente, apenas tateava no escuro na esperança de em algum momento achar a
agulha do palheiro. Isso precisava de um basta. A abordagem tinha que mudar.
Henry tinha que mudar.
Nas quatro sessões seguintes
Henry conseguiu progredir bem mais. Chiquinho parecia um pouco desconfortável
com a nova abordagem mais direta de Henry, mas não ofereceu resistência, deixou
que o psicólogo o guiasse e apressasse a jornada.
Continua...
Raphael Henrique Silva Quintão
19 de setembro de 2020
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