domingo, 2 de novembro de 2014

Conhecendo o assassino



Conhecendo o assassino

- Fique à vontade, se quiser pode se deitar no divã – Disse de maneira calma e pausada Henry, o psicanalista.

- Doutor... Posso chamá-lo de doutor? – Dario perguntou enquanto se deitava no divã.

- Dario, essa já é nossa décima segunda consulta. Por que você faz essa pergunta o tempo todo?

- Gosto de me certificar que você está à vontade.

- Dario, o que há aqui, entre nós, é uma relação além da relação de paciente-médico. Há um relação de confidencialidade. O meu estado de conforto é secundário nessa relação. O que importa é você se sentir à vontade para desfrutar da confidencialidade que partilhamos. Só assim vou poder te ajudar.

- Entendi. Então posso te chamar de Henry?

- Você pode me chamar do que quiser, desde que se sinta confortável em fazê-lo. Afinal nossa prioridade aqui é justamente essa, deixá-lo confortável para que se abra. – Após uma breve pausa, Henry continuou – Onde estávamos mesmo? Na festa, certo?

- Sim, a festa. Eu lembro que eu estava acompanhando o mordomo.

- E o que o mordomo estava fazendo?

- Ele estava na copa, falando com a organizadora da festa e o marido dela. Ela e o marido pareciam bastante empolgados.

- E o mordomo?

- Não sei, ele estava de costas pra mim... Eles entregaram algo para o mordomo, depois agradeceram bastante. Eles pareciam realmente empolgados.

- O que foi que entregaram para o mordomo?

- Não sei, não consegui ver.

- E depois, o que mais?

- Estamos no meio do salão principal. O mordomo está passando por entre os convidados, servindo as bebidas dispostas na bandeja... – Dario dá um longo suspiro – Devoção é mil mãos, não é? Se pensarmos bem, todos os órgãos do corpo humano têm funções bem específicas, exceto as mãos. As mãos podem pegar, alcançar, acariciar, tatear... A verdadeira função da mão é servir, de qualquer forma necessária.

- Não sei se estou conseguindo acompanhar seu raciocínio.

- O mordomo estava ali, no meio de todos da festa, servindo... trinta pessoas? Talvez quarenta. Todas ávidas pelas bebidas e, no entanto pacientemente esperando cada um a sua vez. O mordomo era o único ali a não beber. Somente servindo.

- E você encara isso como um ato de devoção?

- E não é? Ele estava ali servindo a todas aquelas pessoas, sem pensar em si próprio, sem levar em consideração suas próprias necessidades. Servindo, como mãos... como mil mãos serviriam. Devoção é mil mãos...

- Como é esse mordomo?

- Alto, cabelos loiros, parece jovem. Não sei direito... Ele esteve de costas pra mim o tempo todo.

- Você sabe o nome dele?

- Sei.

- Lembrando que estamos revivendo essa situação na sua mente e que você tem total controle sobre tudo que acontece nela, por que não o chama, para que ele se vire e você possa vê-lo?

- Não quero interromper o que ele está fazendo...

- E o que ele está fazendo? Servindo as bebidas?

- Servir as bebidas é um meio para o fim. O propósito real dessa festa não é diversão. O propósito real é despedida. Eu vejo o que o mordomo está fazendo e tenho vontade de impedir.

- E por que não o faz?

- Porque, acima da vontade que tenho de pará-lo, tenho vontade de ver o que vai acontecer.

- Você disse que o propósito real da festa era despedida. Despedida do quê?

- De tudo... da vida... Eu já te contei minha história, doutor?

- Eu sei sua história, Dario, mas fique à vontade para contá-la se assim desejar.

- Meu pai era militar, morreu em ação quando eu tinha onze anos. Após a morte do meu pai, minha mãe começou a adoecer e, dois anos mais tarde, ela já sofria um quadro grave de demência. Após alguns anos de luta, eu e meus irmãos passamos a não conseguir mais cuidar dela, então tivemos que interná-la... Ela morreu ao final daquele ano. Lembro de ouvir o último suspiro dela em meio a fogos de virada do ano.

- Uma situação traumática...

- Sim, mas não tanto quanto foi o convívio com ela, vê-la perdendo a lucidez pouco a pouco... Então pensei: os loucos só parecem que são loucos para aqueles que estão sãos. Sanidade e insanidade são pontos de vista.

- De certa forma você está certo, porém, uma vez que se vive de acordo com um padrão de comportamento, a insanidade se caracteriza pelo desvio desse padrão. Veja bem, existiam tribos nativas da América que tinham o costume de escalpelar seus inimigos. Isso não era visto como loucura pela civilização americana da época, apenas como algo abominável de um cultura distinta. No entanto, se um soldado americano decidisse escalpelar seus inimigos, ele era considerado louco. Isso porque o soldado americano foi nascido e criado seguindo determinados padrões de comportamento que o tornaram incompatível com determinados comportamentos dos nativos, caracterizando assim a insanidade.

- Claro, há uma explicação, mas não é isso que quero dizer. Quero dizer que ninguém percebe que está ficando louco. Tenho certeza de que minha mãe, em toda a sua loucura, sempre se achou lúcida. Os loucos são incapazes de ver a própria loucura. Podemos ser todos loucos e nunca vamos notar.

- Entendo seu ponto de vista. Então, nessa festa, você acha que todos eram loucos, porém não sabiam?

- Todos, exceto o mordomo. O mordomo sabia da loucura deles. Eu sabia da loucura deles.

- E mesmo assim você não interveio?

- Não, eu queria ver se eles continuariam sem conseguir ver sua própria insanidade até o fim.

- E então?

- Eles começam a vomitar sangue, e é esse o início da espiral. Passam-se alguns minutos e estou andando entre cadáveres. Algumas faces retorcidas pela dor, outras com expressão de serenidade. Por mais que eu ande entre eles e procure, não consigo encontrar uma face de arrependimento. Eles realmente seguiram suas crenças até o final, incapazes de enxergar a loucura.

- Eles foram envenenados?

- Sim, esse era o propósito da festa. Todos eles, exceto o mordomo.

- E a identidade do mordomo?

- Estamos em lados opostos do salão principal, ele está de costas para mim. Há tantos corpos entre nós.

- Você acha que as mortes o separam da identidade do mordomo... Então por que não anda até ele? Tem medo de encarar os mortos? Você mesmo disse que foi escolha deles, não há raiva por parte deles.

- Mas eu podia ter impedido...

- Esse destino era a escolha deles. A sua escolha foi a de observar. Você tem que aceitar isso, assim como eles aceitaram.

- E se eu aceitar?

- Poderemos finalmente saber quem é o mordomo. Você só precisa caminhar até ele. Os mortos estão mortos, eles não fazem mais parte dessa jornada. Essa jornada agora é somente sua.

- Eu caminho até ele. Ponho a mão em seu ombro...

- E então?

- Ele se virou para mim, agora posso ver sua face com clareza.

- E quem é?

- Sou eu.


Raphael Henrique S. Quintão