quinta-feira, 10 de setembro de 2020

Pai

 

Pai

    Hoje, nesta manhã fria, sento-me para enfim escrever. Não sei bem por onde começar porque perdi a prática. Meu pai sempre disse que escrever é um músculo, “se você não o usa, ele atrofia”, dizia ele. E eu deixei meu músculo da escrita atrofiar.

Meu pai dizia que, se você não souber o que escrever, sente-se e escreva sobre isso, sobre sua incapacidade de escrever. Certa vez li num livro de Rubem Fonseca que o bom escritor é aquele que escreve até mesmo sem inspiração. Meu pai era um bom escritor, já eu, na melhor das hipóteses, medíocre.

Acho que, no fundo, esse conto acabará sendo sobre isso, a minha incapacidade de escrever sem inspiração. Inspiração essa que não me visita mais desde que meu pai se foi. Vai ver a inspiração foi com ele, vai ver ele era minha inspiração... vai ver esse conto é sobre ele.

Lembro de meu pai sentado na sacada da nossa casa em Saquarema vendo o pôr do sol, sempre com um livro à mão. Certa vez ele virou para mim e disse: “menina, quando você for escrever, não queira ser dona da obra, porque as melhores obras têm vida própria. Deixe que as palavras te guiem, e o conto acha o rumo sozinho”. Ele acreditava que éramos apenas instrumentos da escrita, e nunca donos daquilo que escrevíamos.

Quando adolescente, lembro que arrumei um namoradinho que logo me dispensou. Fiquei por dias inconsolável e trancada no quarto. Até que meu pai abriu a porta e disse: “menina, chega de choro, bota essas lágrimas no papel”, e largou uma máquina de datilografar na mesa, ironicamente, ao lado do meu computador. Em seguida, sem sequer demonstrar qualquer esboço de dó no rosto, afirmou: “o sofrimento afina nossa sintonia”.

Eu demorei anos para entender o que ele quis dizer com o sofrimento afinar nossa sintonia, até que tive que passar pelo meu divórcio, um dos períodos mais turbulentos da minha vida. E foi nessa época que escrevi meus melhores contos. Como diz o ditado: “ostra feliz não produz pérola”, mas, como meu pai bem disse naqueles dias, não se pode querer sofrer para escrever, a escrita é para aliviar a alma.

Foi ainda no luto pela minha mãe que meu pai escreveu seu livro mais bonito, sombrio e melancólico. Depois disso, nunca mais escreveu uma linha, dizia que não conseguia escrever sem cor. Era assim, só por metáforas, que ele falava do que sentia. Ele podia dizer que tinha perdido a vontade de viver, mas preferia dizer que não escrevia sem cor. Poético e trágico.

Minha mãe se foi quando eu ainda era muito nova, então meu pai virou o alvo principal da minha curiosidade acerca da figura materna. Ele se esquivava o quanto podia, falar da mulher da vida dele causava dor, mas eu era persistente e, como toda criança, pouco empática.

Lembro de certo diálogo que correu assim:

— Fala, menina, o que quer saber afinal?

— Tudo.

— Tudo, né? Não quer ser mais específica? Tudo é muito genérico.

— Não. Quero tudo.

— Então tá bom. — respondeu ele franzindo o cenho e coçando a cabeça. — A tua mãe era gelo, eu era fogo. Ela era solidão, e eu era tumulto. Eu era todas as cores, ela era o cinza. Entendeu?

Respondi balançando a cabeça em negativa. Então ele deu um longo suspiro e olhou para mim com uma expressão derrotada.

— Você, menina, nunca vai entender o que eu estou falando porque você tem muito da sua mãe e nada de mim. Eu era um incêndio. No começo o calor é gostoso, mas depois a gente se queima, e eu vivia queimado, eu queimava os outros, eu sofria e fazia sofrer. Nada, nunca, era o suficiente.

— E aí você conheceu minha mãe.

— E aí eu conheci sua mãe.

— Ela apagou o incêndio?

— Não. Ela não se queimou. Ela era à prova de chamas.

— Como assim?

— Quando a gente é assim, intenso, a gente machuca os outros, e parece que é de propósito, mas não é, e dói muito na gente também. Sua mãe sabia me viver sem se machucar. Aos poucos ela foi moldando minha chama, aos poucos ela foi estabilizando meus altos, amenizando meus baixos. No fim, eu continuei intenso, mas era o intenso à maneira dela.

— E isso era bom?

— Era bom para ela.

— E para você?

— Para mim, não. Não, porque estou aqui à maneira dela, mas ela não está aqui. Ela me viveu, agora vivo sem ela.

E assim terminou a conversa.

Depois da minha mãe, nunca mais vi meu pai com ninguém, exceto a dona morte. Com esta ele dançou e flertou por meses nas idas e vindas do alcoolismo. Até que a dona se cansou e o levou de vez. Hepatite fulminante causada por cirrose, disseram os médicos.

Meu pai era mestre na arte do sofrer calado. Do alcoolismo só fui saber já nos últimos meses da vida dele, e aí tudo fez sentido, as metáforas, a depressão, a falta de cor, as garrafas...

Meu pai estava certo, chego ao final desse conto que se escreveu sozinho. A ironia é ele ter me mostrado que meu pai estava errado. Ele dizia que nada tinha dele em mim, mas acho que, na verdade, tenho muito dele aqui. As metáforas, a falta de cor, as garrafas... Parece que estou com a sintonia afinada.

 

 

Raphael Henrique Silva Quintão

11/09/2020

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