Pai
Meu pai dizia que, se você não
souber o que escrever, sente-se e escreva sobre isso, sobre sua incapacidade de
escrever. Certa vez li num livro de Rubem Fonseca que o bom escritor é aquele
que escreve até mesmo sem inspiração. Meu pai era um bom escritor, já eu, na
melhor das hipóteses, medíocre.
Acho que, no fundo, esse conto
acabará sendo sobre isso, a minha incapacidade de escrever sem inspiração.
Inspiração essa que não me visita mais desde que meu pai se foi. Vai ver a
inspiração foi com ele, vai ver ele era minha inspiração... vai ver esse conto
é sobre ele.
Lembro de meu pai sentado na sacada
da nossa casa em Saquarema vendo o pôr do sol, sempre com um livro à mão. Certa
vez ele virou para mim e disse: “menina, quando você for escrever, não queira
ser dona da obra, porque as melhores obras têm vida própria. Deixe que as
palavras te guiem, e o conto acha o rumo sozinho”. Ele acreditava que éramos apenas
instrumentos da escrita, e nunca donos daquilo que escrevíamos.
Quando adolescente, lembro que
arrumei um namoradinho que logo me dispensou. Fiquei por dias inconsolável e
trancada no quarto. Até que meu pai abriu a porta e disse: “menina, chega de
choro, bota essas lágrimas no papel”, e largou uma máquina de datilografar na
mesa, ironicamente, ao lado do meu computador. Em seguida, sem sequer
demonstrar qualquer esboço de dó no rosto, afirmou: “o sofrimento afina nossa
sintonia”.
Eu demorei anos para entender o que
ele quis dizer com o sofrimento afinar nossa sintonia, até que tive que passar
pelo meu divórcio, um dos períodos mais turbulentos da minha vida. E foi nessa
época que escrevi meus melhores contos. Como diz o ditado: “ostra feliz não
produz pérola”, mas, como meu pai bem disse naqueles dias, não se pode querer
sofrer para escrever, a escrita é para aliviar a alma.
Foi ainda no luto pela minha mãe
que meu pai escreveu seu livro mais bonito, sombrio e melancólico. Depois
disso, nunca mais escreveu uma linha, dizia que não conseguia escrever sem cor.
Era assim, só por metáforas, que ele falava do que sentia. Ele podia dizer que
tinha perdido a vontade de viver, mas preferia dizer que não escrevia sem cor.
Poético e trágico.
Minha mãe se foi quando eu ainda
era muito nova, então meu pai virou o alvo principal da minha curiosidade
acerca da figura materna. Ele se esquivava o quanto podia, falar da mulher da
vida dele causava dor, mas eu era persistente e, como toda criança, pouco
empática.
Lembro de certo diálogo que correu
assim:
— Fala, menina, o que quer saber
afinal?
— Tudo.
— Tudo, né? Não quer ser mais
específica? Tudo é muito genérico.
— Não. Quero tudo.
— Então tá bom. — respondeu ele franzindo
o cenho e coçando a cabeça. — A tua mãe era gelo, eu era fogo. Ela era solidão,
e eu era tumulto. Eu era todas as cores, ela era o cinza. Entendeu?
Respondi balançando a cabeça em
negativa. Então ele deu um longo suspiro e olhou para mim com uma expressão
derrotada.
— Você, menina, nunca vai entender o
que eu estou falando porque você tem muito da sua mãe e nada de mim. Eu era um
incêndio. No começo o calor é gostoso, mas depois a gente se queima, e eu vivia
queimado, eu queimava os outros, eu sofria e fazia sofrer. Nada, nunca, era o
suficiente.
— E aí você conheceu minha mãe.
— E aí eu conheci sua mãe.
— Ela apagou o incêndio?
— Não. Ela não se queimou. Ela era
à prova de chamas.
— Como assim?
— Quando a gente é assim, intenso,
a gente machuca os outros, e parece que é de propósito, mas não é, e dói muito
na gente também. Sua mãe sabia me viver sem se machucar. Aos poucos ela foi
moldando minha chama, aos poucos ela foi estabilizando meus altos, amenizando
meus baixos. No fim, eu continuei intenso, mas era o intenso à maneira dela.
— E isso era bom?
— Era bom para ela.
— E para você?
— Para mim, não. Não, porque estou
aqui à maneira dela, mas ela não está aqui. Ela me viveu, agora vivo sem ela.
E assim terminou a conversa.
Depois da minha mãe, nunca mais vi
meu pai com ninguém, exceto a dona morte. Com esta ele dançou e flertou por meses
nas idas e vindas do alcoolismo. Até que a dona se cansou e o levou de vez. Hepatite
fulminante causada por cirrose, disseram os médicos.
Meu pai era mestre na arte do
sofrer calado. Do alcoolismo só fui saber já nos últimos meses da vida dele, e
aí tudo fez sentido, as metáforas, a depressão, a falta de cor, as garrafas...
Meu pai estava certo, chego ao
final desse conto que se escreveu sozinho. A ironia é ele ter me mostrado que
meu pai estava errado. Ele dizia que nada tinha dele em mim, mas acho que, na verdade,
tenho muito dele aqui. As metáforas, a falta de cor, as garrafas... Parece que
estou com a sintonia afinada.
Raphael
Henrique Silva Quintão
11/09/2020
Ficou ótimo!
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